quarta-feira, 23 de setembro de 2009

SONHOS




Toda vez que faço qualquer gesto ou falo qualquer coisa, talvez use um pouco do charme do Clark Gable, Humphrey Bogart, sem ter a menor pretensão de assemelhar nossas aparências. Muito aprendi no cinema.

Quantos personagens eu vivi desde criança e acho que venho vivendo até hoje... quantas vezes fui ou sou o xerife John Wayne de “RIO BRAVO”, Cary Grant de “TARDE DEMAIS PARA ESQUECER”, ou Willian Holden de “PIC NIC”, o filme mais fantástico de minha vida.

O cinema nos proporciona sonhos, aventuras e nos traz de volta o passado. Quantos risos, choros, emoções dessa arte decadente que jamais irá acabar, porque, mesmo que não se produzam mais filmes, ainda teremos os já produzidos; e rever um bom filme é como assisti-lo de novo, ou melhor.

Mas eles estão aí nas aventuras mais exóticas e espetaculares de um “INDIANA JONES”, na pele do personagem Alfredo de “CINEMA PARADISO”, um dos maiores tributo ao cinema, já produzido, e meu maior choro dentro de uma sala de espetáculos. Um choro de pura emoção pela narrativa da história, pelas imagens espetaculares, pelo desempenho fantástico de Philippe Noiret e pela apaixonante música do mestre Enio Morricone. As cenas finais são para matar qualquer um.

Mas, vamos deixar de devaneios. Queria apenas dizer que sou um desses malucos pela sétima arte.

A história que vou narrar agora é o verdadeiro motivo de todas as minhas considerações e um tributo aos amantes do cinema.

Meu nome é Raul, mas sou mais conhecido por Cacau em pelo menos quarenta dos meus quarenta e sete anos atuais. Quem sabe você me conheça.

Por motivos que não vem agora ao caso e alheios à minha vontade, na ausência dos titulares, fui designado a tomar conta do ELETROCINE e projetar o filme “SONHOS”, de Akira Kurosawa, na sessão das 17:15h, do dia 04/10/91.

Como responsável pela programação do cinema, já havia recusado sua exibição no início de nossas atividades, alegando não ser um tipo de filme para qualquer espectador e querendo conhecer primeiro o público desse horário.

Descobrimos, com a introdução da “Última Sessão”, que ela era freqüentada pelos verdadeiros amantes do cinema. O Tempo passou e resolvemos projetar o filme.

Abri as portas às 17:05h e encontrei à minha espera um público de umas dez pessoas. Um problema técnico havia inutilizado as luzes gerais que iluminavam a sala, deixando apenas uma pequena luz de cortesia que ajudaria a acomodação das pessoas. Pedi desculpas a todos depois de explicar o problema.

- Os aparelhos de projeção estão funcionando? - perguntou uma rapaz, ficando aliviado depois de eu assentir com a cabeça.

Liguei tudo, abaixei a tela automática, as pessoas foram tomando seus lugares preferidos e, como era de costume, elas iam chegando aos poucos, mesmo depois de iniciado o filme.

Contei, através do vidro da cabine de projeção, que o público final era de vinte pessoas. Talvez tivesse razão quando dizia que esse tipo de filme não era para qualquer um, considerando os quase cinco mil funcionários que ocupavam os quatro prédios da Eletropaulo, na Granja Julieta.

Na tela, Kurosawa, o mestre que, ao receber o Oscar das mãos de Spielberg e Lucas, declarou humildemente: -“Estou profundamente honrado, mas devo me perguntar se realmente mereço o prêmio. Porque acho que ainda não consigo compreender o que é Cinema. Ainda me falta dominar a verdadeira essência do Cinema, coisa que é muito difícil. Mas vou trabalhar com o maior afinco possível para fazer por merecer esse prêmio”.

O filme foi se desenrolando e, do primeiro sonho “O SOL BRILHANDO ATRAVÉS DA CHUVA” ao fantástico “CORVOS”, em que o jovem Kurosawa (Akira Terao) encontra-se com Vincent van Gogh (Martin Scorsese), deixaram o cinema, dez pessoas.

Foram embora talvez parodiando as palavras acima do velho Akira. Fiquei apreensivo, com medo que o filme acabasse sem nenhum espectador.

Puro engano. As dez pessoas restantes, poucas talvez para um filme tão maravilhoso, proporcionar-me-iam uma enorme emoção. Extasiado, eu os via através de silhuetas entre a cabine e a tela e pude começar a sentir suas presenças e ver que havia errado em minhas contas. As dez haviam se transformado em cem, em mil. Eram a verdadeira essência do Cinema: os que assistem, os que apludem, os verdadeiros amantes da arte. Eles eram o Chaplin, o Ford, o Fellini e eu sentia-me o próprio Alfredo do Cinema Paradiso, perplexo, como se estivesse passando para eles todas as cenas que o tempo acultou.

O filme terminava com os créditos rolando sobre a última cena dos “MOINHOS” e ninguém se mexia. Um fade-out, a tela escurace e ninguém se mexeu, ninguém se levantou. Ficamos por alguns segundos no escuro e eu sem ter a coragem de acender a fraca luz de cortesia que iria tirá-los do Cinema.

Minha vontade era de voltar o filme e passá-lo tantas vezes quantas eles o quisessem. Mas minha mão implacável, apertou o interruptor e a luz se acendeu. Todos se levantaram devagar e foram saindo, em silêncio, e eu, com um tremendo sentimento de culpa de não sei o quê, comecei a rebubinar a fita. Levantei a tela, desliguei tudo e fechei o cinema.

No centro desse acontecimento ficou um sonho particularmente revelador: o de fazer um tributo àquelas dez pessoas e agradecê-las pela emoção.

O Cinema é isso: é uma coisa só entre o produtor, diretor, atores e espectadores. Uma transmissão de emoção, da idéia ao aplauso. Akira Kurosawa declarou, certa vez, que quando quisesse transmitir uma mensagem, escreveria uma carta. “SONHOS” talvez seja essa carta íntima e desesperada que o artista, aos oitenta anos, resolveu escrever à Humanidade, usando a linguagem que melhor domina. A minha. Humildemente, só coloquei no papel...

Raul Claudio Baptista - 04/10/91

Para o Eletrojornal

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