terça-feira, 6 de novembro de 2007

ARMANDO JOÃO BAPTISTA

Por Raul Claudio Baptista


A lembrança mais remota que eu tenho dele deve ser dos anos 50. Eu tinha seis anos e lembro quando ele morava em Vila Esperança, na rua Celina, na casa, que por coincidência, eu nasci.
Meus avós maternos moravam ao lado e, por um motivo qualquer, minha mãe me fez nascer naquela casa.
Tio Armando nasceu em São José dos Campos, no dia, 24 de junho de 1916. Dia de São João, de festas, de fogueiras de balões...
São dessas comemorações de aniversários as minhas mais antigas reminiscências. As festas eram suas mas, na verdade, ele as fazia para alegrar o Kiko, nosso querido e infortunado primo que, mesmo sem entender nada, ficava alegre e feliz com a queima de fogos. Ele não media esforços em adquirir os mais espetaculares. Nós, as crianças, nos beneficiávamos com tudo isso e os divertimentos eram inesquecíveis.
- Olha o balão, Kikinho! Gostou, Kikinho? Acredito que a tristeza que dava ao ver essas cenas, fazia crescer dentro do peito, um amor tão grande que, por não podermos fazer nada, simplesmente o amávamos e o respeitávamos.
São memoráveis as lembranças do “Vamos escutar disco Kikinho?” A vitrola era a corda, as agulhas tinham de ser trocadas a cada dezena de discos e, toda vez que a corda estava acabando, e os cantores começavam engrossar a voz, o Kiko ficava nervoso e era capaz de mandar os discos pela janela. Alguém tinha que correr rapidamente e dar corda de novo. Aquela aceleração da música fazia o Kiko gargalhar. Nós as crianças adorávamos fazer isso, pois podíamos mexer no aparelho e isto era sinal de amadurecimento. Não sei bem se as recordações das músicas são dali ou da casa do vovô, em Santos.
Foi nessa casa também que vi o Pedrinho e a Edith pela primeira vez. Pelo menos a que eu me lembro, mas sei que já havíamos nos encontrado antes. A Edith chegava para morar com os tios Armando e Natalina, e o Pedrinho para morar em nossa casa na avenida Conde de Frontin, também em Vila Esperança.
Mas, voltando a falar do titio, até hoje fico admirado e agradecido com a paciência que ele tinha. Apesar de ter o Kiko doente e mais outro filho, o Reynaldo, levava-me em todos os passeios e viagens. A tudo isso não posso deixar de acrescentar também os mesmos predicados à tia Natalina. Tinham carro, coisa rara para a época.


Passear sobre o viaduto do Largo da Concórdia e do Chá (eram os únicos), o pastel do Largo São José do Belém, a pizza no Pizzaiolo da avenida Celso Garcia, sítio dos tios Saulo e Nair, em Mogi das Cruzes, ver na cidade o papai Noel e os presépios no Natal, assistir, no Pacaembu, aos jogos do Corinthians dos jogadores: Cabeção, Murilo e Julião, Idário, Goiano e Roberto, Cláudio, Luizinho, Baltazar e Touginha, dos famosos esquemas 1-2-3-5.
Finalmente, e acho que o mais gostoso de todos, as viagens a Santos, na casa do vovô. O tio colocava os famosos óculos amarelos para neblina (usava também no sol). O Kiko ia chutando o painel do carro, e eu e o Reynaldo ficávamos atrás. A tia Natalina pegava um pedaço de pão, já cortado, passava patê de fígado e nos dava. As viagens eram alternadas com idas do meu pai, minha mãe e a Cidinha, minha irmã. Todos no mesmo carro.
Todas as vezes que passávamos pela cidade de Cubatão tia Natalina dizia “ Claudio! Sabe por que a cidade chama-se Cubatão?, eu dizia que não sabia e ela emendava “É porque as mulheres daqui passam batom no Cu! Quá! Quá! Quá!. Morria de rir, mesmo com a repreensão do tio Armando “Nataliiiiiiiiiiiina!!!!!”.
Em Santos, tio Armando e vovô Antônio iam bem cedo ao mercado comprar peixe. Pescada branca e camarão que a vovó Carolina preparava divinamente. A pescada fritava em postas e os camarões com espaguete no molho de tomates. Ah! Que saudades!
Os tempos eram outros, a educação que recebíamos era outra, as crianças mais obedientes, os adultos mais severos. Havia um respeito muito grande nosso para com os mais velhos e muitas vezes grande incompreensão deles para conosco. Não participávamos das conversas e, às vezes, nem as escutávamos. Assim mesmo somos tão saudosos.
A conclusão que eu tiro, é que os tempos eram mais sofridos, as coisas difíceis de se conquistar, os valores diferentes. Uma simples viagem a Santos tinha o sabor de uma volta ao mundo. Uma bola ganha de presente era muito mais que hoje acertar na loteria.
Desses tempos e desse tipo de educação, tenho uma experiência engraçada e desagradável acontecida em Santos. Ainda mais porque eu era criança.
Com a parentada toda e mais a família de um tal Sr. Vicente, amigo nosso e motorista de praça, viajamos para o litoral. Passamos na casa do vovô, rapidamente, pois o destino era o Guarujá, onde faríamos um grande pic-nic, além dos divertimentos na praia. No Guarujá, naquela época, só havia praias.
Para atravessar a baía, tínhamos que pegar uma balsa que nos levava de Santos para lá. Eu estava no carro do tio Armando.
Os carros subiram na balsa alinhados e freados e a embarcação partiu. As pessoas do carro do Sr. Vicente desceram do veículo e, na balsa tomavam a brisa marinha, descontraídas e felizes. Indagamos ao tio Armando se poderíamos fazer o mesmo e escutamos:
- Só a turma do carro do Sr. Vicente vai descer! Que porrada! Que frustração!
Aquilo era mais que um transatlântico de luxo. Navegar naquele convés era uma experiência nova, deliciosa, embriagante. Não estar lá fora era um dos maiores desapontamentos da minha vida, apesar dos seis anos de idade.
Nos frustramos e obedecemos sem dizer nada. O titio sabia que estava sendo chato mas, falou, tá falado. Coisas da época.
A criança esquece rápido. Será? Só sei que na praia procurei me divertir ao máximo. Brinquei, nadei, tiramos fotos (ver foto) e arquitetei um plano para a volta. Voltaria no carro do Sr. Vicente.
Peguei no pé da minha mãe para que arrumasse isso para mim. Quer dizer, infernizei a minha mãe o dia inteiro, até que ficou tudo arrumado.
A tardinha, lá estávamos nós esperando o “Transatlântico” na beira do cais. E eu com o Sr. Vicente e família.
A balsa chegou, os carros entraram, alinharam, frearam e a turma do tio Armando desceu. A nossa não.
O tio veio em nossa direção, enfiou a cabeça na janela e baforou o seguinte: - Na ida desceu o pessoal deste carro! Agora, na volta, desce a turma do meu carro! Me olhou, foi embora, e eu nunca mais o perdoei. Autoritarismo incompreensível mas normal da época.
Muitos anos depois, eu, já homem feito, lembro de outro caso interessante.
O dia em que a tia Natalina morreu, foi um dia muito triste e, paradoxalmente, um dos mais engraçados. O tio Armando foi o motivo de tanta graça.
Era uma e meia da madrugada quando o Rubinho, meu cunhado e marido da Cida, bateu em casa (eu não tinha telefone), dizendo que a tia havia falecido, e que o tio Armando iria comigo até o Hospital do Servidor Público onde ela se encontrava.

Alguns minutos depois estacionava em minha porta ele e o Reynaldo. Eu já estava esperando. Partimos rapidamente.
O trânsito favorecia por causa do horário, chegamos depressa. Estacionamos o carro, placa 6698 (número que perseguia os carros do tio), na rua em frente ao hospital e descemos.
Havia se passado, no máximo, duas horas do falecimento.
O titio vestia um terno azul marinho, lembro-me bem. Ia na frente apressado com aquele andar característico, balançando o corpo para os lados, eu e o Reynaldo seguíamos atrás.
Para quem conhece o local, o hospital, entrando pelo portão principal, fica a direita. Do lado esquerdo, seguindo em frente, chega-se ao velório.
Não sei porquê, o tio Armando, ao invés de virar para a direita ao passar o portão, virou para esquerda. Fiquei sem entender.
Foi andando (parece que ainda estou vendo) jogando o corpo para os lados, até chegarmos em frente ao velório. Havia um só naquela noite e estava abarrotado de gente. Onde iria o meu tio?
Ele entrou, nós entramos atrás. Todos pararam de conversar e ficaram nos olhando. O defunto era uma mulher velha.
O tio Armando aproximou-se do ataúde, começou a chorar e esfregar às mãos da falecida. “Meu Deus! O que ele esta fazendo?” Pensava.
- Tio! Não é aqui, ela tá no hospital!
- Hum?
- Essa não é a Tia Natalina!
- Hum?
Ele continuava chorando, coitado. Estava perdido.
Aquilo começou a me dar uma vontade de rir insuportável e insustentável.
Eu comecei a rir, acho que com o esôfago, com o estômago sei lá. Era um riso tão abafado que parecia que eu estava chorando.
Tentava adivinhar os pensamentos dos outros. Atônitos, acho que pensavam: “Quem são esses caras? O velho aí, será algum amante da falecida? Ainda veio com dois capangas!
O meu estado de riso deve-se também um pouco a passagem idêntica que havia presenciado exatamente uma semana antes.


A mãe de um colega de serviço da Eletropaulo, falecera e, quando fui ao velório apresentar minhas condolências, ele me levou `a sala errada, apresentou-me como colega a uma senhora que chorava a beira do caixão. Ofereci meus sentimentos, estranhei porque quem jazia ali era um homem e não uma mulher. Rimos muito quando, baixinho, ele disse que havia se enganado de velório. Quer dizer: dois enganos em uma semana, foi demais para mim.
Agora estava eu ali. O tio Armando se enganara também. É claro que ele estava desnorteado com a morte da titia.
Quando se deu por conta do que fazia, da mesma forma que entrou, ele saiu. Todo mundo olhando e os três saindo de fininho. Só lá fora é que comentou “É...estou meio atrapalhado! Me enganei!”
Com a morte da tia Natalina a família toda se distanciou. A casa deles em Itaquera era o ponto de encontro de todos nós. Se você quisesse encontrar alguém dos Baptistas, era lá que ele estava. O titio começou a se apegar ainda mais ao Kiko, à casa (não vai aqui nenhuma crítica) começou a mudar de comando, os freqüentadores não eram mais os mesmos e, por uma dessas obras do tempo e da vida, a nossa família acabou nessa época. Hoje em dia, só nos encontramos em velório.
Quando me divorciei em 1985, e posteriormente me casei de novo, parece que ninguém aceitou muito bem esse fato. Fiquei totalmente abandonado. Mesmo sem saber os motivos, ninguém me apoiou ou me procurou, salvo, e agradeço muito, o amparo de meus pais e irmão e respectivos familiares.
Até hoje, passados onze anos, quase ninguém vem à minha casa. Alguns me telefonam de vez em quando, sentem saudade, querem me encontrar em algum lugar, mas não aparecem. Eu tenho um novo lar, uma nova família, mas ninguém conhece.
Foi por esses embaraços que fiquei muitos anos sem ver o tio Armando. Depois de tempos o vi, em 1991, quando a tia Esther completava oitenta anos. Depois de cinco anos, quando ele já estava nos últimos momentos de sua vida, apareci, meio constrangido, parecendo um penitente, como que sentindo ainda uma espécie de rejeição, é que pude estar ao seu lado.
Aquele homem forte e elegante era agora só pele e osso, agonizando na doença que o consumia. Apesar de nem me ver mais (estava sem visão nenhuma), trocamos algumas palavras. Eu, de consolo, ele, de queixas.


Morreu poucos dias antes de completar oitenta anos, em Buri, onde residia na época, e eu ainda estava lá.
Era a mesma época de seus tantos outros aniversários. A mesma época de minhas mais remotas lembranças e também as da última.