quarta-feira, 23 de setembro de 2009

CINE SÃO SEBASTIÃO



Quando em 1989, tentando atender aos apelos do meu amigo Sérgio Martinelli, fui assistir ao filme do Giuseppe Tornatore, Cinema Paradiso, no Center Norte, depois da cena em que o rapaz passa a noite sob a janela da namorada, esperando que ela abrisse a veneziana para saudá-lo na noite de Ano Novo, eu comecei a chorar e não parei mais. As cenas fortes em emoção, a música maravilhosa do Ennio Morricone, eram realmente de tirar o fôlego. Não sentia-me mais sentado na poltrona e passei a fazer parte do filme. Eu era o próprio Totó, personagem central da história, envolto à vida simples daquele lugarejo e ao mundo maravilhoso do cinema. As lágrimas que corriam em meu rosto, não eram resultante da trama melancólica daquela película, mas das coisas que vivi em época semelhante.

O Alfredo poderia bem ser o Simão, um baixinho que projetava os filmes nos cinemas de meu bairro. Vila Esperança. O Cinema Paradiso, às vezes era o cineminha do Padre Constantino depois do catecismo aos domingos na igreja, ou na maioria delas, o meu querido Cine São Sebastião, altar das minhas maiores comoções de êxtase, fobia, ceticismo, crença, amor e paixão. O Oscar de melhor ator eu ganharia por anos consecutivos, pelos diferentes papéis vividos em cada filme que assistia.

Morri quando fiz o papel principal em “Marcelino Pão e Vinho”, dancei com Kin Novak em “Pic-Nic”, duelei com terríveis bandidos em “Rio Bravo”, atravessei sob bombardeio a “Ponte do Rio Kway”, casei-me com Jane Powers em “Sete Noivas Para Sete Irmãos”, e fiz meu maior musical em “Singin’In The Rain”.

Eram tão fortes meus desempenhos em alguns filmes, que precisava de algumas horas para voltar a ser eu mesmo, depois de interpretar papéis significativos ou que simplesmente me ajustasse melhor como ator.

Muitos, como eu, trabalhavam nas matinês e soirés do Cine São Sebastião. Tenho certeza. Os amantes da nobre arte, nos seus maiores dias de glória, viveram situações semelhantes. Se sentássemos para conversar a respeito, relembraríamos nossos possíveis encontros no Set de filmagem.

O meu envolvimento com o Bastião, como era chamado carinhosamente pelos seus mais íntimos freqüentadores, começou em uma segunda feira de 1953, um ou dois dias depois de sua inauguração. Fiz uma birra danada, em casa, para que minha mãe me levasse na matinê daquele palco de espetáculo que por longo tempo havia acompanhado a construção. Foi preciso muitos berros, pinotes e choros para que eu a convencesse levar-me rua Maria Carlota abaixo, em direção ao cinema. Tomei banho fora de horário, engoli a comida do almoço e de mãos dadas, num dos dias felizes da minha vida, rumamos para lá. Olhava para os lados, esperando que as pessoas perguntassem sobre a minha alegria, e que eu pudesse responder - Vou no cinema!

Da rua 19 de Maio, uma antes de chegar, notei a falta de movimento no local e estarreci-me ao pensar que a seção já havia começado. Foi pior que isso.

Não haviam matinês às segundas. Elas aconteceriam às terças e quintas, nos explicou o Lanterninha, única pessoa presente naquele dia. Parece que isso aconteceu quinze dias atrás, tal a nitidez em minha memória, vendo o funcionário vindo ao nosso encontro, como que com pena ao ver-me frustrado e não entender o que acontecia. Ele e minha mãe, aconselhavam-me com muita ternura, voltar no dia certo, na mesma hora. Percebi que de nada adiantaria fazer outra birra e embeveci-me em profunda tristeza. Cenas fortes que ficam em nosso sub consciente e não se apagam com o tempo. Por incrível que possa parecer, o primeiro dia que entrei no cinema, simplesmente, não consigo recordar. Acho que deve ter sido mais glorificante que esse do melancólico erro.

Com o passar do tempo, o Bastião era como um irmão mais velho que eu não tinha. Ensinava-me as vicissitudes da vida, do amor, do bem e do mau, preenchendo os vazios e assoberbando meus dias e meus conhecimentos. Os filmes começaram ajudando formar minha personalidade.

As matinês eram uma festa para todos do bairro. Quase ninguém possuía um aparelho de TV, (era o início da TV brasileira) e o rádio era o nosso único veículo de comunicação com o mundo em que vivíamos. Assistir aos últimos lançamentos cinematográficos era estar mais por dentro da moda atual, a qual não podíamos acompanhar por pura deficiência nos orçamentos financeiros do lar. Era um martírio arrumar os trocados do ingresso, e na maioria das vezes, eu vendia jornal velho a um açougue da Av. Amador Bueno da Veiga para adquiri-lo.

À frente do Bastião, logo depois do meio dia, acumulava-se uma pequena multidão de crianças como eu, jovens e senhoras que traziam lanches embrulhados para degustação ao longo da seção que exibiria dois filmes. O primeiro invariavelmente era de menor importância, o que não tirava sua qualidade, o segundo um lançamento que nos chegava quase sempre, no ano seguinte de sua exibição no país de origem. Para se ter uma idéia, dependendo do filme, seus mil e quinhentos lugares quase sempre tomados, produziam uma vez e meia o números de pessoas aglomeradas em sua porta. Nem todos entravam. Ali era palco para todos os meios. Pipoca, quebra-queixo, biju e as tradicionais paqueras, além das provocações que sofríamos dos elementos que nos antecederam na famosa Turma do Largo. O pequeno largo da padaria onde a turma se encontrava. Aproveitando a lembrança, vou contar o que aconteceu numa dessas provocações:

Os meus primos mineiros de Monte Santo, Vilma, Décio e Paulo, nos visitavam juntamente com a prima Wanda e os tios, Sebastião e Lourdes. Faziam uma exaustiva viagem de doze horas de trem pelas companhias Mogiana e Paulista até finalmente chegarem a São Paulo onde permaneciam no mínimo por quinze dias, tal a distância que separavam as duas cidades. Invariavelmente isso acontecia nas épocas de férias escolares.

O cinema era nossa única diversão e nos programamos para uma matinê daquelas. Eu, o anfitrião, a Vilma, e a dupla, Paulo e Decinho.

A turma do largo daquela época, só freqüentava o cinema para fazer arruaça. Quer dizer, da porta para fora. Permaneciam na calçada implorando que algum otário aceitasse seus desafios e provocações. Era um vandalismo total.

A Vilma, como sempre bonitinha, não precisou de nenhum esforço para chamar a atenção daqueles gladiadores. Era psiu daqui, psiu dali, confundidos entre assédios à prima e provocações a nós, os defensores.

Dava prá matar de raiva mas eu fingia que não nos importunavam. Eram uns vinte moleques para nós três o que daria, no mínimo, sete porradas para cada um. Nessas ocasiões, é melhor bancarmos os covardes, mesmo porque, o medo de apanhar não provocava-me a menor reação de heroísmo.

Quando finalmente entramos veio um alívio e rapidamente o conforto de podermos assistir aos filmes em paz. Ledo engano.

O Paulo, metido a mineiro durão já naquela idade, sem que notássemos foi até a porta, chamou possivelmente o mais encrenqueiro de todo o bando.

- Se ocêis é macho, ispera nóis na saída, seus bosta! Entrou, sentou-se ao nosso lado e o filme começou. Meu Deus! Aquilo era tudo que a turma lá fora queria. Eles passavam dias sem brigar porque ninguém, em sã consciência, seria tão ingênuo para cair nesse tipo de armadilha. O Paulo caiu... e nós também.

As legendas ainda subiam na tela desenrolando o fim da fita, quando começamos a sair. Lá fora, o palco estava montado. Mais de vinte leões esperavam os três cordeiros e sem que eu pudesse entender, era sopapo prá todos os lados. O Paulo estava prevenido, retardou a sua saída e foi o primeiro a correr. Não levou um tapa.

Para a gang, o ponto de referência era a Vilma. Quem estivesse ao seu lado apanhava. O Paulo não estava, eu e o Décio sim. O balancete final oferecia dez truculentos para cada um. Era tanta bordoada que a minha sensação era de estar com o rosto ao alcance da hélice de um helicóptero: - Tuf! Tuf! Tuf! Tuf! Tuf!

Com muito custo, e muitos socos e pontapés depois, conseguimos correr, e sem ninguém prá apanhar... a briga acabou. Mais adiante o Paulo nos explicava o acontecido e diante de nossa revolta concluiu;- Ocêis são lerdo! Num corre! São uns bosta qui nem eles!

Ah... São Sebastião! Mesmo desses dias inapetentes sinto falta!

O cinema tinha construção moderna, exibia os filmes do circuito Serrador, não permitia que os homens entrassem sem paletó, e mantinha um rígido controle disciplinar aos espectadores. Vou tentar descrevê-lo:

Na sua ampla fachada, embaixo da marquise ostentava seis enormes cartazes. Os dois centrais, alertavam o público para os filmes da semana. Os dois laterais, os que viriam “A SEGUIR”, os das pontas os que estavam “BREVE”.

Três enormes portas completavam sua arquitetura. A do meio dividia a entrada e a bilheteria. As outras duas, ficavam abertas e mantinham cerquinhas de madeira de 1,20m de altura, pintadas de azul, que só eram retiradas na saída do grande público. No salão de espera, uma imagem de São Sebastião na parede além de mais alguns cartazes de filmes futuros. Junto ao canto lateral esquerdo, a bombonier, que nos oferecia as tão saudosas Pipoca Americana, Mentex, o tradicional Drops, balas Paulistinha e Toffee, Bombom Sonho de Valsa, Chocolate Diamante Negro e outras variedades. Em frente às guloseimas, um amplo corredor em declive, onde havia uma porta a direita que dava no meio do cinema, e no fim, o bar que servia cafezinho nos intervalos dos filmes. Três portas davam acesso à sala de espetáculos e mais três corredores em declives. O cinema era dividido em seis blocos de cadeiras de madeira, que perfaziam seus confortáveis mil e quinhentos lugares. As paredes eram verdes com relevos de losangos em branco. Sete portas com cortinas vermelhas, incluíam, as três de entradas, a da esquerda que levava ao bar, uma do lado oposto que nunca abria e duas dos banheiros. O da esquerda era para os homens, o da direita para as mulheres. A enorme cortina que cobria a tela era dourada.

Nos intervalos, mesmo se o cinema estivesse completamente lotado, levantávamos o assento da cadeira e colocávamos um lenço para guardar o lugar. Cafezinho, cigarro, paquera, uma voltinha para esticar os ossos. Na volta, o lugar ainda era nosso e o lenço permanecia intacto. Bons tempos.

Se o filme era um sucesso, tivesse ganho algum Oscar e seu protagonista fosse o Kirk Douglas, Tony Curtis ou John Wayne, os seus lugares e o cinema tornavam-se pequenos. “O Manto Sagrado”, conseguiu estender uma fila com mais de duzentos metros , e muita gente ficou de fora.

Também exibiam filmes de pouco orçamento e sem grandes estrelas que conseguiam bagunçar a portaria. O filme “Marcelino Pão e Vinho”, aqueles filmes do “Joselito”, da “Libertad Lamarque”, as comédias do “Cantinflas”, eram um estrondo de bilheteria. Nos filmes religiosos, as madres do Colégio São José traziam aquela fila enorme de crianças uniformizadas e lotavam a casa. Eu era uma delas.

O cinema era muito bem administrado pelos irmão, João e Francisco Perez.

E a “Ronda dos Bairros”? Era a turma do Manoel de Nóbrega e do Sílvio Santos da Rádio Nacional que se apresentavam periodicamente aos domingos de manhã. Ronald Golias, Francisco Egídio, Vilma Bentivenha, Solon Salles, Osni Silva, José Lopes, Rago e seu famoso Regional, Betinho, Carlos Alberto de Nóbrega e muitos outros. Era uma festa. O cinema até balançava de tanta gente. A sua frente era a maior bagunça com a multidão que queria ver seus astros, misturada à feira livre dos domingos. - Corre, corre dona Maria, leva laranja madura, mas cuidado prá não levar o Peru do Sílvio Santos, em Bela!!

Na queresma, depois do carnaval, as rádios faziam silêncio dos sambas e marchinhas da festa que havia acabado. Era aí, que passavam as Chanchadas Carnavalescas da “Atlântida”. Oscarito, Grande Otelo, Ankito, Cill Farney, Violeta Ferraz, Catalano, Zezé Macedo, Eliana, Anselmo Duarte , José Lewgoy e Adelaide Chioso. Os filmes, que sempre retratavam uma história e o carnaval carioca, traziam os sucessos do Nelson Gonçalves, Francisco Carlos, Angela Maria, Anísio Silva, as irmãs Linda e Dircinha Batista, Cauby Peixoto entre outros. No cinema, filas intermináveis. Era uma delícia.

Até aquele sertanista, Aires da Cunha, que tinha casado com a índia Diacuí, conseguiu numa noite, lotação máxima. A índia havia morrido após dar a luz a uma menina. Era notícia nacional, capa do “O Cruzeiro”, da “Manchete”, o que levou alguém a produzir um filme a respeito. Eu também fui assistir.

Na verdade, em todos os grandes momentos de minha vida, o Bastião estava presente e fazia parte. A primeira namorada, a segunda, a terceira. A primeira chama-se Yara, filha do Seu Cido. Marcamos encontro na matinê de um domingo. Na fila da bilheteria, cada um pagou seu próprio ingresso, entramos e fomos sentar no meio do bloco esquerdo, que ficava perto do banheiro dos homens.

Ela usava um perfume forte que era vendido em uns tubinhos, na feira. Ainda hoje minha imaginação consegue sentir sua essência. Foi só eu sentar, para notar na fileira traseira, uma molecada danada, estrategicamente sentada para me azucrinar. - Não vai pegar na mãozinha dela? Se não pegar, eu pego! Não vai dar um beijinho? Se não der, eu dou! Eu nem peguei na mãozinha, nem dei o beijinho. Foi um saaaaco!

Muitos foram os filmes marcantes. Quem naquela época, dentro do cinema, poderia supor na mais louca imaginação, que nos dias de hoje poderíamos possuir e rever os filmes do São Sebastião? Numa caixinha pequena, uma qualidade razoável de imagem e som, é claro que sem aquele clima embriagante do escurinho, o cheiro, o flash do projetor atravessando toda a sala e a atmosfera que só o cinema podia nos dar. Ainda assim, é quase o único meio de revermos nossos queridos filmes.

Um deles eu fiquei sem rever desde pequeno. “O Pequeno Polegar”. Quando passou numa das seções de cinema da Globo, sinceramente, eu consegui voltar no tempo de tal maneira, que pude ver toda a garotada saindo e assobiando a música tema. Chorei tanto de saudade, que nem conseguia acompanhar o desenrolar da história. Felizmente o gravei e tenho em minha coleção.

Por falar em coleção, possuo a grande maioria dos que eu reputo como: “Os Filmes Da Minha Vida”. “Férias de Amor - PICNIC”, de 1955 é um dos mais espetaculares. A dança do William Holden e Kim Novak ao lado daquela ponte do rio onde houve o Picnic, é uma das coisas mais lindas que um diretor conseguiu filmar. Moonglow, uma música de Hudson-DeLange-Mills é mais antiga que o filme. O tema é do George Duning que conseguiu juntá-las e dar um efeito tão maravilhoso que a maioria das pessoas não sabe tratar-se de duas músicas. A Kim Novak estava linda de morrer, Holden era meu galã preferido e as magistrais interpretações de Rosalind Russell como Rosemary, Bett Field, Susan Strasberg, Cliff Robetson, a direção do Joshua Logan são perfeitas.

Hoje, nas minhas várias idas ao Estados Unidos, poucos podem entender, é como se eu estivesse procurando os personagens do filme daquela cidade tão americana, pudesse tocá-los, passarmos algumas horas juntos, ou simplesmente tomar aquele trem cargueiro, sem destino, e viver as emoções que o personagem do William Holden conseguiu viver. O filme é da Columbia Pictures.

A minha segunda paixão é “Rio Bravo - Onde Começa o Inferno”, de 1959. John Wayne, Dean Martin, Rick Nelson. Chego quase às lágrimas quando, dentro da delegacia, o Dean Martin e o Rick Nelson cantam,”My Rifle, May Pony And Me”, música do Dimtri Tomkin.

Outras paixões: Primavera de Amor - April Love, com Pat Boone e Shirley Jones - O Alamo, com John Wayne, Richard Widmark, Laurence Harvey, Richard Boone, Linda Cristal, Frankie Avalon. - Oklahoma, também com a Shirley Jones. Vera Cruz, com Burt Lancaster e Gary Cooper. - Ou Vai Ou Racha, com Jerry Lewis e Dean Martin. - Tarde Demais Para Esquecer, com Cary Grant e Deborah Kerr, os musicais do Fred Astaire e Gene Kelly, as comédias da Doris Day, os love film de Frank Sinatra, e muitos outros que dariam uma lista interminável. Todos assistidos no São Sebastião, e graças ao milagre da eletrônica, eu tenho quase todos. Músicas e filmes.

Depois da época romântica que descrevi, com o advento da televisão, o cinema tornou-se decadente até certo ponto. Já não havia mais o Glamour de outrora, os filmes não conseguiam mais atrair tanto público. As novelas já prendiam as famílias em suas casas, não precisavam pagar para vê-las, nem saírem em noites frias.

Nessa época começava para mim a derradeira fase do São Sebastião. Foi em frente suas portas que formei grandes amizades com a nova Turma do Largo. O tempo do Rock do Elvis Presley também estava decadente dando lugar aos Beatles, e consequentemente à Jovem Guarda do Roberto Carlos. A turminha estava sentada em frente ao cinema, com uma vitrola de pilha, escutando as músicas dos rapazes de Liverpool, John, Paul, George and Ringo Starr. Eu, no barzinho do Seu Mário, ao lado, tomando umas caipirinhas com uma turma do Nenê da Escola de Samba. Estava bem chumbado, a turma riu do meu jeito. Fiquei uma fera, e chamei todo mundo prá briga. Imaginem! Não agüentava-me nem em pé!

Não sei porque razão, todos vieram conversar comigo, foram super carinhosos, convidaram-me à encontrá-los a noite e começou a grande amizade que dura até hoje.

Dentro do cinema, no bloco da direita, ao lado do banheiro das mulheres, era o nosso “Sindicato”. Só nós sentávamos ali. Ninguém usava aqueles lugares a não ser a Turma do Largo. Você entrava mesmo no escuro, ia no Sindicato e achava toda a turma.

Era uma outra Turma do Largo, sucessores da primeira. Como poderei descrevê-las?

Na primeira, seus elementos eram do tipo Jece Valadão. Na segunda, a nossa, tínhamos as características do James Dean. Não éramos cafajestes. Rebeldes, pero non mucho. Deu para entender?

Nesse tempo o Bastião recebeu nada menos que o Roberto Carlos. Com ele, o Erasmo, Vanderléa, Eduardo Araújo e grande parte da turma. Apesar do cinema estar cheio, tinha mais gente do lado de fora.

Com o sucesso dos tremendões, sentia-me traído com a invasão da minha, da nossa casa. Aquilo começou a descaracterizar o verdadeiro sentido de sua construção. A falta de público, a decadente produção Hollywoodiana de seus filmes, foram contribuindo gradativamente para seu término.

Lembro-me de uma vez, em Santos. Ao visitar a casa que era de meus avós paterno, descobri que ela mantinha-se intacta em sua aparência externa. Até a pintura continuava a mesma. Ela fora palco de minha infância e juventude. Comecei a filmá-la com profunda tristeza e saudade. Os novos proprietários ao ver-me, interpelaram-me assustados com o que acontecia. Depois de minhas explicações, convidaram-me a entrar mas eu recusei. Queria manter viva em minha mente as imagens do passado. A disposição dos móveis da sala, dos quartos, a cozinha, a oficina de meu avô. Se eu entrasse, tenho certeza, que apagaria tudo ao ver as inevitáveis mudanças. Coisas de um homem romântico que teve passado e gosta de cultivá-lo.

Assim foi com o meu querido São Sebastião. Não fui vê-lo nos seus últimos dias, nem no último, nem depois. Ele virou quadra de futebol de salão, estúdio de filmes pornográficos, e como já me expressei certa vez, “Hoje é uma igreja evangélica, onde no mesmo local cantam hinos e louvores, como que a reverenciar todas as nossas passagens por aquela sala de espetáculo.”

Saudade foi só o que restou. Na lembrança, como se fossem aquelas últimas cenas dos beijos do Cinema Paradiso, os nomes dos filmes que me emocionaram:

1952-Cantando na Chuva

1952-Matar ou Morrer

1953-A Um Passo da Eternidade

1954-Vera Cruz

1954-A Condessa Descalça

1954-Janela Indiscreta

1954-Vera Cruz

1954-Sindicato de Ladrões

1954-O Mensageiro do Diabo

1955-Ladrão de Casaca

1955-Eu Chorarei Amanhã

1955-Férias de Amor (Pic Nic)

1956-E Deus Criou a Mulher

1956-O Homem que Sabia Demais

1956-Assim Caminha a Humanidade

1956-Juventude Transviada

1956-Rastros de Ódio

1956-A Volta Ao Mundo Em 80 Dias

1956-O Homem do Braço de Ouro

1956-Alta Sociedade

1957-O Prisioneiro do Rock

1957-A Ponte do Rio Kwai

1957-Tarde Demais Para Esquecer

1957-Sem Lei, Sem Alma

1957-Meus Dois Carinhos

1958-Da Terra Nascem os Homens

1958-Um Corpo Que Cai

1958-Gata Em Teto de Zinco Quente

1958-O Vampiro da Noite

1959-Quanto Mais Quente Melhor

1959-Confidência à Meia Noite

1960-O Belo Antônio

1960-Se Meu Apartamento Falasse

1961-Bonequinha de Luxo

1962-Lawrence da Arábia

1963-Fugindo do Inferno

Tudo isso não existe mais. As cortinas do São Sebastião fecharam-se definitivamente. Seu prédio ainda continua no mesmo lugar. Sem os cartazes, sem os espectadores, sem os filmes.

Como tantos cinemas de São Paulo que viraram garagem, supermercados, ele também se transformou. Como o Cinema Paradiso, um dia fatalmente será implodido.

Muitos que o freqüentavam também se foram, artistas e público. Como na teoria de Einstein, “Nada se perde, tudo se transforma”, o São Sebastião também não se perdeu nem acabou. Virou história e saudade.

Raul Claudio Baptista - 07 de abril de 1997

NOTA FINAL:

A vida é realmente engraçada e cheia de surpresas. Num dos nossos encontros anuais da Turma do Largo, no dia 11 de dezembro de 1988, eu, os amigos, Calil e o Jajá, antes do churrasco começar, resolvemos levar camera e microfone para fazer umas tomadas do Largo e do Cine São Sebastião. Quando filmávamos o cinema, um rapaz estranho nos abordou perguntando o que estávamos fazendo. Depois da nossa explicação, ele identificou-se como sendo filho do Francisco, um dos donos do cinema. Chamava-se, Renato Eli Perez, e tinha 23 anos.

Ficamos surpresos com sua figura, humilde e que em nada lembrava o pai. Os irmão João e Francisco vestiam-se esmeradamente com terno e gravata e com muita polidez em suas atitudes. Aquele rapaz, (desculpem meu julgamento) estava numa pior. Disse que estava procurando emprego (era um domingo).

No meio de nossa conversa, contou-nos que seu pai havia morrido, que o mundo havia dado muitas voltas e que não tinha ficado com nenhuma herança e não sei porque motivo, o pai não lhe havia deixado nada para viver. Alguma coisa deve ter acontecido porque ele era muito rico. Nós lamentamos a notícia, nos despedimos e voltamos ao Clube e a nossa festinha.

Hoje, quando resolvi escrever essa história, (não havia contado isso) estava escutando uma fita de audio, cujo conteúdo é músicas e diálogos que não foram gravados em discos ou CDs. Gravei do vídeo cassete quando assistia aos filmes e de vez em quando, para matar a saudade, escuto e viajo.

Enternecido, resolvi passar para o papel minhas memórias do Cine São Sebastião. A primeira pessoa que veio em minha mente foi a do João, dono do cinema. Nunca nos conhecemos pessoalmente apesar de já tê-lo encontrado umas mil vezes no tempo das matinês.

Conhecendo o Julinho, seu cunhado, achei que seria fácil arrumar um encontro e escutar do próprio João, histórias que eu pudesse incluir e enriquecer meu texto, além de fotos, e outras coisas.

Demorei dois dias ao telefone para encontrar meu amigo, e antes nem o tivesse encontrado. Meio constrangido, deu-me a notícia que mês passado, no meio de uma rua na Moóca, o João havia morrido num enfarto fulminante. Outra notícia triste, fiquei muito abatido. Foi como matar o passado definitivamente.

Acho que finalmente ele pôde conhecer e juntar-se a todos os ídolos que durante tantos anos habitaram sua casa.

Nós, que ainda vivemos nesse mundo, derradeiramente cultivaremos a memória que ainda existe em nossas mentes.

Ninguém mais poderá contar histórias além daquelas que sabemos e vivemos. O filme Cinema Paradiso é a maior e mais espetacular homenagem às casas exibidoras incluindo entre elas o nosso querido Cine São Sebastião. Isso tudo, foi o fim de um filme sem reprise.

THE END

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